a quem se escreve
um poema de revolta?
estou de pé numa rua
em são paulo
e escrevo
não sei se é para mim,
ou se é para o outro
começo não há cura
não sei aonde vou
não sei aonde essas palavras vão
eu sei que esse, aqui,
é quem eu sou,
todo
— como curar uma pessoa inteira?
escrevo mais uma vez
não há cura
enquanto digito, pergunto
como enformar uma dor?
e por que dar palavras
a uma dor?
então lembro do que ele
me disse uma vez
não deixe o silêncio
se fazer mortalha
é preciso escrever sobre os últimos dias
as cores que vejo na internet
são as do arco-íris
mas eles,
os outros,
carregam apenas o vermelho
do nosso sangue
é preciso dizer que não, não há cura
há mais de quatro anos eu sei
mas a ignorância
o ódio
o preconceito
o medo
te fazem duvidar
ontem minha amiga comentou
a decisão da justiça
minha resposta, o silêncio
prefiro não falar sobre isso
o silêncio poderia calar
a realidade,
mas eu percebo que ele
ensurdece, junto,
minha voz
é preciso escrever
escrever com palavras
o que eu não consegui dizer
o que eu não consegui dizer
é preciso dizer que não há cura
porque em março ou abril de 2013
eu beijei um menino
pela primeira vez
e não houve cura
é preciso dizer que não há cura
porque em agosto de 2014
eu contei para minha mãe
do menino que eu gostava
e ela sabia que
não havia cura
é preciso dizer que não há cura
porque em maio de 2015
eu escrevi “meu namorado é cineasta”
mas minha avó não sabe,
é preciso dizer que não há cura
porque em maio de 2015
eu escrevi “meu namorado é cineasta”
mas minha avó não sabe,
e ela também não sabe
que não há cura
é preciso dizer que não há cura
porque em outubro de 2015
meu pai descobriu
que eu sou gay
é preciso dizer que não há cura
porque em outubro de 2015
meu pai descobriu
que eu sou gay
(aquele foi o começo)
e talvez ele não saiba
que não há cura
e talvez ele não saiba
que não há cura
não há cura para quem eu sou
não há cura.
não há cura.
não há cura.
escrevo tudo isso a mim
quero que essa revolta
seja a minha revolta
vá, volte e lute por isso
o exílio te fez esquecer
como era demolir
diariamente
um dos pilares de si
vá, volte, lute
eu digo para mim
e repito não há cura
***
(são paulo, 29/09/2017. escrito sob efeito dos últimos dias: queermuseu, cura gay, etc.)
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